Comentário

Basileia: o coração da hidra<br>financeira mundial

Miguel Viegas

Estão em curso ne­go­ci­a­ções no quadro dos acordos de Ba­si­leia III que pre­tendem es­ta­be­lecer uma re­gu­la­men­tação do sis­tema fi­nan­ceiro à es­cala mun­dial.

Muitos terão cer­ta­mente ou­vido falar de Ba­si­leia. Porém, poucos sa­berão o que se es­conde nesta sim­pá­tica vila Suíça, si­tuado junto à fron­teira com a França e a Ale­manha. O Co­mité de Ba­si­leia sobre o Con­trolo Ban­cário (BCBS, Basel Com­mittee on Ban­king Su­per­vi­sion) foi criado em 1974, na sequência da fa­lência do banco alemão Hes­tatt e dos res­pec­tivos efeitos de con­tágio. O Co­mité de Ba­si­leia reúne os res­pon­sá­veis dos prin­ci­pais bancos cen­trais dos países ca­pi­ta­listas e tem como missão exercer uma vi­gi­lância sobre o sis­tema fi­nan­ceiro mun­dial e propor me­didas de con­tenção, quase sempre na sequência do re­ben­ta­mento das bo­lhas fi­nan­ceiras cri­adas pelo pró­prio sis­tema. Assim foi com os pri­meiros (1988), se­gundos (2004) e ter­ceiros acordos de Ba­si­leia, estes úl­timos ainda em fase de ne­go­ci­ação e im­ple­men­tação.

Para en­tender a ver­da­deira na­tu­reza deste Co­mité que não emana de ne­nhum go­verno ou ins­ti­tuição de­mo­crá­tica – mas que nem por isso deixa de ter am­plos po­deres que acabam por con­di­ci­onar a vida de todos nós – im­porta in­tro­duzir uma outra ins­ti­tuição, bem menos co­nhe­cida mas que con­centra todo o poder da fi­nança in­ter­na­ci­onal: o cha­mado Banco de Com­pen­sa­ções In­ter­na­ci­o­nais (BIS, Bank of In­ter­na­ti­onal Set­tle­ments), no seio do qual fun­ciona o Co­mité de Ba­si­leia.

O BIS, criado em 1930 no quadro do plano Young, re­pre­senta a pri­meira ins­ti­tuição fi­nan­ceira in­ter­na­ci­onal des­ti­nada a ar­ti­cular e de­fender os su­pe­ri­ores in­te­resses da alta fi­nança.1 Vale a pena ler a obra "TOWER OF BASEL: The Sha­dowy His­tory of the Se­cret Bank that Runs the World" (de Adam LeBor). O livro des­creve como é que este banco, des­ti­nado a ser o banco dos bancos e que reúne a nata do ca­pital fi­nan­ceiro mun­dial, foi cons­truindo a sua teia de in­te­resses até do­minar por com­pleto a eco­nomia mun­dial, in­ter­vindo sempre na sombra e de­baixo de um ri­go­roso se­cre­tismo. Basta re­ferir que o BIS, de 1930 a 1977, fun­ci­onou num an­tigo e dis­creto hotel. A sua en­trada es­condia-se atrás de uma loja de cho­co­lates. Outro facto sig­ni­fi­ca­tivo: du­rante a Se­gunda Guerra Mun­dial con­vi­viam na di­recção do banco qua­dros dos dois lados be­li­ge­rantes: França, Reino Unido, EUA, Ale­manha e Itália. Paul He­chler, alto fun­ci­o­nário do banco e membro do par­tido nazi as­si­nava a sua cor­res­pon­dência com um «Heil Hi­tler!», sem sus­citar qual­quer mal-estar entre os seus pares. No final da guerra, cinco di­rec­tores do banco foram acu­sados de crimes de guerra.

Esta in­tro­dução é im­por­tante, na me­dida em que toda a re­gu­la­men­tação do sis­tema ban­cário que está a ser posta em prá­tica neste mo­mento emana desta or­ga­ni­zação ma­fiosa, cujas ori­en­ta­ções não são vin­cu­la­tivas, mas acabam por ser le­vadas à letra pelos es­tados e pela União Eu­ro­peia. Desta forma, os re­qui­sitos mí­nimos de ca­pital e os rá­cios de li­quidez, todos eles ob­jecto de di­rec­tivas apro­vadas nestes úl­timos dois anos, de­correm da apli­cação dos acordos de Ba­si­leia III.

São, por­tanto, os pró­prios ban­queiros a ditar as re­gras do jogo à Co­missão Eu­ro­peia e esta a exe­cutar com zelo as or­dens do dono. Du­rante esta se­mana par­ti­ci­pámos numa de­le­gação do Par­la­mento Eu­ropeu em Ba­si­leia onde reu­nimos com o res­pec­tivo Co­mité. Du­rante dois dias fomos brin­dados com mais um enorme exer­cício de puro ilu­si­o­nismo, ten­tando con­vencer-nos da bon­dade dos bancos e da pos­si­bi­li­dade da sua re­gu­lação. Mas ao mesmo tempo que são cri­adas re­gras cha­madas pru­den­ciais, que obrigam os bancos a man­terem nos seus ba­lanços pro­vi­sões para os ac­tivos de maior risco, o PE aprovou o re­lan­ça­mento da ti­tu­la­ri­zação que re­pre­senta a peça chave desta nova en­gre­nagem a que se deu o nome de banca sombra («Shadow Ban­king») e que re­pre­senta já cerca de 25 por cento dos ac­tivos fi­nan­ceiros to­tais. O me­ca­nismo é sim­ples e per­mite con­tornar toda a re­gu­la­men­tação. Os grandes bancos po­derão con­ti­nuar a es­pe­cular e as­sumir riscos ex­ces­sivos, usando de­pois a ti­tu­la­ri­zação para limpar os seus ba­lanços. A ti­tu­la­ri­zação per­mite cons­truir pro­dutos fi­nan­ceiros a partir de cré­ditos du­vi­dosos que de­pois são ven­didos às ins­ti­tui­ções que com­põem o «Shadow Ban­king» e que ficam de fora de toda a re­gu­lação (bancos de in­ves­ti­mentos, se­gu­ra­doras, fundos de pen­sões, Hedge funds etc.).

Longe vão os tempos em que o BIS tra­ba­lhava em se­gredo num re­gisto dis­creto. Hoje, o BIS e o seu Co­mité de Ba­si­leia fun­ci­onam num gi­gan­tesco edi­fício que do­mina a ci­dade e es­pelha o peso e a força do ca­pital fi­nan­ceiro no mundo. Mas este edi­fício tem pés de barro e há de gerar as crises que di­tarão o seu fim.

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1 O plano Young foi criado para en­qua­drar o pa­ga­mento das in­dem­ni­za­ções da Ale­manha em vir­tude da sua der­rota na Pri­meira Guerra Mun­dial 




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